Bolsas dos estudantes de mestrado e doutorado pagam menos do que o mínimo necessário para que eles se mantenham — a solução é pedir ajuda à família ou fazer bicos para quitar as contas
O torcedor da Portuguesa que acompanhou as temporadas de 2013 e 2014 não deve saber, mas muito provavelmente comprou seu ingresso no estádio do Canindé com um doutorando em Educação. É que, trabalhando como atendente na bilheteria do estádio nos jogos do clube, o sociólogo Eduardo Carvalho, 31 anos, conseguia um dinheiro extra para não ficar no vermelho. Na época, ele recebia apenas uma bolsa deR$ 2,2 mil mensais para trabalhar em um projeto de pesquisa sob orientação de um professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). O auxílio era pago pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a instituição que mais distribui bolsas para mestrandos e doutorandos no país.
A tese de Carvalho, que será defendida ainda neste ano na Faculdade de Educação da USP, é sobre o retorno da Sociologia como disciplina no currículo do Ensino Médio. “Sempre tive que conciliar a pós-graduação com outro tipo de trabalho. Não tem como a gente se dedicar integralmente à pesquisa com o valor da bolsa. O custo de vida em São Paulo é muito alto.” Carvalho fez a graduação e o mestrado em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina, Paraná. Mudou-se para a capital paulista após passar no concurso para professor do Estado, função que exerceu entre 2007 e 2013 na cidade de Ilhabela, no litoral norte. Para voltar à academia e começar o doutorado na capital, pediu demissão.
Nesse período em que abriu mão do emprego (e de qualquer estabilidade) para se dedicar à pesquisa, ele trabalhou como tutor a distância e também foi monitor de alunos da graduação para conseguir um dinheiro extra. “Eu queria continuar me dedicando exclusivamente à pesquisa, mas queria ter também uma vida confortável. Pô, tenho uma filha pequena, né?."
As duas agências federais de fomento à pesquisa, Capes e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), consideram as bolsas de pós-graduação um auxílio, não um salário. É possível ter outra fonte de remuneração, desde que sejam respeitadas algumas regras: o emprego tem que ser na área de pesquisa do aluno, o vínculo tem que ter surgido após a matrícula na pós, a remuneração não pode ser superior ao valor da bolsa e o professor orientador precisa autorizar o trabalho (veja abaixo).
Menos que o mínimo
Existem hoje no Brasil pouco mais de cem mil bolsistas do CNPq e da Capes de mestrado e doutorado que recebem, respectivamente, R$ 1,5 mil e R$ 2,2 mil por mês. Há ainda as bolsas de fomento à pesquisa financiadas pelas agências estaduais, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que paga uma bolsa mensal que varia entre R$1.889,40 e R$3.446,40 para 7.601 mestrandos e doutorandos. O valor mal dá para pagar o aluguel de um apartamento nas maiores cidades brasileiras, mas nem sempre foi assim.
Em janeiro de 1995, a bolsa de mestrado era de exatamente R$ 724,52. Se tivesse sido reajustada de acordo com a inflação, estaria em R$ 3.276,74 nos valores de hoje — mas ela paga só R$ 1,5 mil. O cálculo foi feito pelo economista André Coutinho Augustin, que foi bolsista do CNPq no mestrado em Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O levantamento, publicado no começo de junho no blog Enquanto se Luta se Samba Também, mostra que, neste ano, as bolsas de pós-graduação atingiram o menor valor em 20 anos.Até o começo dos anos 2000, segundo Augustin, um corte geral nos gastos da educação não permitiu reajustes. “Só depois de 2004 é que começaram a fazer algumas atualizações nos valores. Mas a prioridade era o número de vagas na universidade. Até 2013 as bolsas foram corrigidas só pela inflação, sem ganho real; em 2014 veio o ajuste fiscal e aí não houve mais correção nenhuma”, explica. Augustin comparou também o valor das bolsas com o salário mínimo necessário, uma estimativa que o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) faz mensalmente para saber qual seria o salário ideal para uma família se sustentar. O levantamento mostrou que, entre 1995 e 1996, a bolsa de mestrado tinha um valor muito próximo do mínimo necessário. Hoje, ela equivale a menos da metade do mínimo.
Por isso mesmo, para se manter como bolsista, especialmente nas grandes cidades, é preciso algum tipo de apoio da família. Thais Kuperman, 28 anos, é formada em Jornalismo e está concluindo o mestrado em Letras na USP sobre o romance Herzog, de Saul Bellow, com uma bolsa da Fapesp. Antes de conseguir o auxílio financeiro, Kuperman estava trabalhando na organização de uma exposição de arte para se manter. Depois, conseguiu se virar só com a bolsa. “É muito apertado e é um tipo de trabalho (o mestrado) que demanda muita dedicação. Às vezes é difícil ter cabeça para fazer outras coisas por causa do envolvimento. Existem períodos bem tensos por causa dos prazos, algumas pessoas têm uma relação bem complicada com o orientador. Sem o suporte da família é muito difícil.”
Bolsa da depressão
Capes quer que juntas médicas avaliem alunos que abandonam curso por motivos de saúde
Um ofício emitido pela Capes no fim de maio causou polêmica entre professores e alunos. O documento informava que todos os casos de desistência de curso por motivo de doença deveriam ser submetidos a uma junta médica — mas há quem afirme que a desistência possa estar ligada à depressão causada pela própria bolsa.
A orientação é para que o aluno seja avaliado pelo grupo de médicos antes de o pedido de desistência ser encaminhado à Capes. A decisão foi motivada, segundo a agência, pela “crescente quantidade de casos de não conclusão de curso por motivos de saúde”.
Minha casa, minha vida
Kuperman estava morando com uma amiga antes de saber se conseguiria ou não a bolsa. Até que sua situação se definisse, achou mais prudente voltar para a casa dos pais. Quando finalmente recebeu o resultado, foi morar com o namorado em um apartamento cedido pela avó. “Não dá para esbanjar muito, não dá para sair o tempo inteiro. É apertado, mas sem pagar aluguel dá para viver.”
Ter seu próprio canto é fundamental para pós-graduandos, mas é difícil bancar o aluguel só com a bolsa. Doutoranda em Nutrigenética na USP, Marina Norde, 26, encontrou um refúgio a 95 km de São Paulo, em Campinas, na casa dos pais. Três vezes na semana ela vai para São Paulo cumprir as atividades da pesquisa que realiza com bolsa da Capes. Na capital, dorme na mesma república em que morou durante a graduação, ao custo de R$ 30 por noite.
No mestrado, quando não tinha atividades no laboratório, Norde se mudava para a biblioteca da universidade para conseguir trabalhar com tranquilidade, já que dividia o apartamento com outras três amigas e compartilhava o quarto com uma delas. “Quando você tem o próprio ambiente, é você quem dita o volume ali. Quando divide a casa e o quarto, não pode exigir que a outra pessoa não faça barulho, não converse.”
O sociólogo Eduardo Carvalho acha que morar em república tem prazo de validade na vida de qualquer pesquisador. A maior parte do seu esforço para conseguir um dinheiro extra vendendo ingressos para jogos de futebol se deve ao fato de ele ter tido como prioridade viver na própria casa durante o doutorado. “Nos primeiros meses, aluguei um quarto na casa de umas amigas. Mas depois decidi morar sozinho porque vivi em república por dez anos da minha vida. Já estava de saco cheio.”
“É apertado, mas sem pagar aluguel dá para viver”, diz Kuperman, que faz mestrado em Letras na USP e precisou voltar para a casa dos pais antes de se mudar para apartamento da avó.
E o salário, ó
Desde 2010, emprego remunerado é permitido, mas com restrições
> A Capes e o CNPq começaram a autorizar trabalhos remunerados, desde que sejam na área de pesquisa do estudante e com a permissão do orientador
> Caso o aluno consiga um emprego na área, a remuneração não pode ser maior que o valor da bolsa
> Não há desconto de Imposto de Renda nem de INSS sobre a bolsa; se o estudante quiser contribuir com a Previdência, terá de fazê-lo como autônomo
> Apesar de a bolsa não ser considerada um salário, se o bolsista tiver que pagar pensão alimentícia, por exemplo, terá o valor descontado mensalmente
“Paitrocínio” é para quem pode
Daniel Martins, 26 anos, que foi bolsista da Capes durante o mestrado em Relações Internacionais na Fundação San Tiago Dantas, em São Paulo, onde estudou acordos preferenciais de comércio, chegou a procurar trabalho em restaurantes, mas, sem ter experiência no ramo, nunca conseguiu nada. Quando precisava, recorria aos pais, que entendiam as dificuldades da carreira acadêmica.
“Nunca deixei de assistir a uma aula nem de entregar um artigo para fazer trabalhos por fora”, conta. Quando concluiu o mestrado, Martins começou a trabalhar em um site focado em Relações Internacionais, e não tem planos de voltar para a vida acadêmica tão cedo. Ele diz que está cansado “da vida de estudante” e não quer, pelo menos por enquanto, começar um doutorado. “As pessoas costumam achar que a gente é vagabundo. É preciso bom humor e energia para ter uma produtividade alta com essas adversidades.”
Quem não pode contar com o “paitrocínio” e não quer fazer bicos de garçom (ou de vendedor de ingressos para jogos de futebol) sempre pode tentar encontrar uma segunda fonte de renda que se encaixe nos critérios estabelecidos pelas bolsas. Mas, às vezes, nem isso dá certo. Fernanda Cervenka, 36 anos, formada em Terapia Ocupacional, começou o mestrado em Tecnologia Assistiva no programa de Ciências da Reabilitação da Faculdade de Medicina da USP em outubro de 2015 e passou a receber a bolsa da Capes. Em abril deste ano, foi contratada por uma residência inclusiva da Prefeitura de São Paulo para pessoas com deficiência. Assim que conseguiu o emprego, a orientanda avisou a orientadora — que, por sua vez, comunicou à Capes. A agência de fomento pediu mais explicações à bolsista sobre o trabalho, como carga horária, o turno em que as funções eram realizadas e o salário que recebia.
Depois de um mês, Cervenka recebeu um documento informando que o pedido de acúmulo havia sido negado. Ela solicitou à Capes que informasse os motivos do indeferimento, mas até hoje não recebeu da agência detalhes sobre o porquê de o pedido não ter sido autorizado. Cervenka se viu obrigada a abrir mão da bolsa. Apesar disso, continua trabalhando na pesquisa vinculada ao programa de pós-graduação.
“Tenho um ano e meio de investimento nesse projeto. Antes de começar a receber a bolsa, trabalhei por meses de forma voluntária. Falta pouco mais de um ano para eu terminar o mestrado e estou muito envolvida. Não vou parar agora”, diz. Segundo Cervenka, o trabalho na residência é flexível, não exige que as tarefas sejam feitas sempre nos mesmos dias da semana nem exige cumprimento de horários. “Eu poderia facilmente conciliar meu trabalho com a bolsa, tanto que continuo fazendo as duas coisas, só que sem receber pela Capes”, conta.
Procuram-se pesquisadores
A baixa remuneração das bolsas é um problema também para os professores, segundo a orientadora de Cervenka, Selma Lancman. “Às vezes até sobram bolsas, porque nem sempre há alunos que aguentam viver só com o valor que pagam. A pós-graduação é um trabalho ou não é? Se é um trabalho, quanto vale a remuneração por esse trabalho?”, questiona.
Para Lancman, não é possível dizer que uma pessoa que não tenha ajuda financeira dos pais não consiga viver com a bolsa. “O que acaba acontecendo é que os jovens que pensam numa carreira universitária demoram um pouco mais para sair de casa. Eles conseguem assumir mais tardiamente a sua autonomia financeira.”
Se precisar ajudar nas contas de casa, segundo Lancman, o estudante nem procura a carreira acadêmica. “Em qualquer escolha, ele vai ter que fazer alguma coisa que dê retorno imediato. E a carreira universitária demanda muito tempo para ter um retorno razoável”, afirma.
Pior ainda, só quando esse retorno não vem. Eduardo Carvalho, o sociólogo que fazia bicos na bilheteria do estádio da Portuguesa, também trabalha eventualmente como garçom para complementar a renda. Faz serviços esporádicos em restaurantes da zona norte de São Paulo durante o doutorado. “É uma segunda ocupação minha, quase a primeira”, diz. “A gente tem que correr atrás. A condição de pesquisador é precária, ainda mais com a crise que vive o Brasil. Na maior parte do tempo, consegui dinheiro extra como monitor. Mas quando não dava, precisava fazer outra coisa.” Com o término da bolsa, prestes a finalizar o doutorado, Carvalho está na mesma situação que a maioria dos pós-graduandos do país, segundo ele próprio: desempregado.
Ciência com fronteiras
Ação do governo prioriza alunos da graduação — bolsas de doutorado são apenas 3.327 das 14.437 em vigência
O programa federal criado em 2011 já levou para fora do Brasil 92.880 pessoas. A bonança, porém, está acabando. Por causa da crise econômica, o programa sofreu uma grande redução no orçamento, o que impactou diretamente na quantidade de bolsas. No caso do CNPq, por exemplo, em 2015 foram 831 bolsas; neste ano, 12 — uma redução de 98,5%.
Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, bolsistas da Capes enfrentaram problemas, em junho, para renovar as bolsas de doutorado em universidades da Europa. Os estudantes tiveram o benefício interrompido após parecer negativo da agência.
Fonte: Revista Galileu (aqui)