terça-feira, 4 de outubro de 2016

De fato, quem são nossos educadores?

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Na era da internet e das chamadas redes, reformar o ensino vai além da escola        

*Flávio Tavares

04 Outubro 2016 | 03h02

A política educacional não é assunto privativo dos políticos, que, aliás, já têm decisões em demasia a depender só do que pensem, dos interesses que defendem ou da caça ao voto. Ensino e educação constituem parte sensível da organização da sociedade, sua base e arcabouço.

Basta essa constatação, que é axioma universal, para concluir que o governo Temer se precipitou e errou ao propor uma reforma no ensino médio por meio de medida provisória (MP), sem nenhum debate anterior entre educadores e a área educativa. As MPs são quase uma imposição em que o Legislativo não tem tempo sequer de ouvir com atenção os especialistas e a sociedade. A Constituição de 1988 instituiu-as para casos urgentíssimos que prescindam de explicações. Mas todos os governos as usaram no varejo, num temporal com raios e trovoadas de acréscimos plantados pela demagogia interesseira dos parlamentares.

Nos anos 1960 participei da implantação da Universidade de Brasília, em que a visão de Anísio Teixeira (somada à de Darcy Ribeiro, frei Matheus Rocha e outros, como Fernando Azevedo) tentou edificar uma educação superior abrangente, nos moldes das universidades norte-americanas. Depois, o poder ditatorial confundiu Harvard e o MTI com a Universidade de Moscou e a tentativa se frustrou...

Muito moço ainda, aprendi com eles que o ensino superior só é “superior” se, com as raízes da sociedade, apontar a rota do futuro. Alfabetizar e “fazer contas” é o início de um caminho em que se aprende a todo instante. Só não se aprende quando pensamos que “já sabemos tudo”. Na verdade, quando “sabemos tudo” apenas sabemos que nada sabemos. Galileu e Einstein sabiam que sabiam pouco, tal qual o genial Stephen Hawking sabe que quase nada sabe do universo e da vida.
O projeto de “reforma” do ensino do governo Temer parte do pressuposto contrário – por ele, um menino ou menina de 16 ou 17 anos já sabe tanto e está tão capacitado no conhecimento do mundo por ter cursado o primeiro ano do ensino médio que (a partir do segundo semestre do segundo ano) já pode escolher as matérias de ciências e línguas a seu bel-prazer... Obrigatórias mesmo, até o final, serão só Português, Inglês e Matemática. Nesse trio (cujo aprendizado será forte) estaria o umbigo do mundo e da vida!

Essa visão caolha distorce os fundamentos do ensino. Desde os primórdios o ensino é o êmulo da educação e define os caminhos da vida. Forma profissionais – do engenheiro ao marceneiro, do médico ao operário, do professor ao agricultor – para constituírem uma nação, um povo, cidades, núcleos de convivência.

Ensino e educação têm em si um sentido inato de solidariedade – quem sabe tem o dever de ensinar a quem não sabe. E aí chegamos ao absurdo maior da “reforma” pretendida: recém-saídos da adolescência (e conhecendo pouco do mundo) os alunos deverão guiar-se sozinhos e escolher as disciplinas a cursar antes de concluírem o segundo ano. Serão órfãos do conhecimento, carentes de bússola ou orientação.

Pergunto: na trepidante sociedade de consumo, em que a tecnologia da era digital torna quase tudo obsoleto em meses, poderão os jovens decidir sobre o que devem aprender se nem conhecem o significado que a disciplina X ou Y pode ter no futuro? Vão escolher por “ouvir dizer”, ou pelo que a propaganda lhes sugira. Isso pode ser pior do que o atual currículo escolar, que se aponta como único culpado pela desastrosa situação do ensino médio.

Será que (mesmo ampliando o número de horas-aula) a solução está em “afrouxar” e facilitar? Num século voltado para a tecnologia e a pesquisa, por que tornar “optativo” aprender Química, Biologia, Física ou História?

Por acaso nos esquecemos de que, no cotidiano, tudo é química? Começa pela cozinha – o alimento no fogão é a química mais velha e primitiva, mas com ela chegamos à portentosa química atual, que nos levou aos medicamentos e está presente em tudo: transforma petróleo em vestuário, borracha ou couro sintético, PVC e outras mil coisas imprescindíveis.

A maioria das críticas ao projeto menciona apenas a não obrigatoriedade de educação física, esquecendo outras carências. Por que desdenhar da física e não nos prepararmos para a robótica? Não penso em sondas a Júpiter, como a Nasa, mas em saber como se faz um chip, algo que só montamos sem decifrar o que é.

Por que desdenhar das ciências biológicas, que abrem caminho à medicina e à preservação da natureza? Por que ignorar a História, se é com a experiência do passado que a humanidade constrói o futuro? Mais que flexibilizar (ou afrouxar?), não será fundamental melhorar os conteúdos e entender que a educação vai além da escola?

No Brasil, quem educa com mais força e persistência? A escola convencional, com quadro negro e giz ou até com computador e internet? Ou a TV, que entra em casa em cores, sob o comando do Faustão, Gugu, Sílvio Santos, da Xuxa ou das vulgaridades do Ratinho e similares?
Não estarão aí os “educadores” de fato? As professoras do ensino fundamental (que em parte do Brasil ganham pouco acima do salário mínimo) podem equiparar-se à persistência de Ana Maria Braga e seu papagaio inteligente? A TV ensina em domicílio, é assídua, repetitiva e colorida. Assim, aponta e forma comportamentos.

Tudo o que apenas se ensina pode extraviar-se com o tempo. Quantas coisas nos ensinaram e esquecemos! Talvez nos tenham ensinado mal (e seguem assim), mas quem de nós sabe usar a equação do primeiro ou segundo grau na matemática diária, das compras no supermercado aos investimentos empresariais?

Educar é algo amplo e global, que não se limita à sala de aula. Na era da internet e das chamadas redes, reformar o ensino vai além da escola. Por que esquecer isso e deixar que a vulgaridade se torne a grande educadora?

*Professor aposentado da UNB, jornalista e escritor, prêmio jabuti de literatura em 2000 e 2005.

Fonte: Estadão (aqui), Imagem: Internet.

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